domingo, 25 de novembro de 2012

Não fui para a guerra de carro, mas voltei de carona - Marcos Gorinstein



Todo domingo e quinta feira eu viajo para uma região de Israel chamada Gezer, no centro sul, entre Jerusalém e Tel Aviv, perto do aeroporto e das cidades de Lod e Ramla. Há dois ônibus que eu posso pegar, o 438 (ele não vai nem pra Vila Isabel e nem pro Leblon) e o 448, ambos saindo de Jerusalém e indo até Ashdod, cidade costeira que fica a cerca de 30 km de Gaza.

No último domingo, ao entrar na rodoviária de Jerusalém, eu percebi que o 448 havia sido cancelado e um cartaz no ponto do ônibus dizia que em função das condições de segurança no sul as linhas tinham sofrido modificações. Além disso, os soldados que estavam indo para a guerra tinham preferência para pegar o ônibus.

Peguei o 438 e o ônibus estava vazio. Geralmente há fila (ou quase isso, porque fila é uma palavra que não consta no dicionário de hebraico!) e uma tradicional confusão para se pegar o ônibus, mas não nesse dia. No caminho passamos por três caminhões do exército transportando tanques para a entrada de Gaza.

Quinta feira, quatro dias depois, poucas horas depois do cessar fogo, lá vou eu novamente, para Gezer e, mais uma vez, observo algo novo para mim. Na entrada da plataforma do ônibus tinha um cachorro Dálmata preso num ferro ao lado de uma mala rosa. A dona do cachorro e da mala estava comprando bebida no quiosque em frente. Um casal e suas duas filhas tentavam passar pelo cachorro, mas não conseguiam, ficaram com medo, só o pai conseguiu passar.

Ele segura a porta e começa a gritar:

- “Venham, venham, vocês vão perder o ônibus! Venham, venham. Venham agora, já. Motorista! Motorista! Motorista, espere, motorista!”.

Desesperado para não perder o ônibus ele gritava sem parar, como um louco. Enfim, sua esposa e suas filhas entram no ônibus e a mãe abre um sorriso fala:
  
- Oi motorista, vamos para Ashdod, estamos voltando pra casa.

Continuam fazendo uma bagunça enorme até que os quatro se acomodassem e o pai voltasse pra pagar as passagens. E quando pra minha surpresa entra no ônibus a moça do cachorro Dálmata com a mala rosa (que era do tamanho do cachorro), uma imigrante russa, ainda aprendendo a falar hebraico.  E esse foi o cenário:

Sobe escada, empurra a mala, cachorro excitado e irritado com a focinheira, abre bolsa, pega a carteira, cachorro empurra, mala cai, gritos com o cachorro, pega o dinheiro, motorista pergunta pra onde ela vai, cachorro empurra, desce a escada, puxa o cachorro, vai no banco, deixa a mala e o cachorro, volta pra falar com o motorista, o motorista pergunta novamente pra onde ela vai, o cachorro volta, o motorista reclama do cachorro, ela grita com o cachorro, as pessoas da fila começam a reclamar, todos temem o cachorro, mas enfim ela responde ao motorista após ser perguntada pela terceira vez:

- “Eu vou para Ashdod, motorista”.

Pouco tempo depois do término do conflito as pessoas tentam voltar às suas vidas e retornam às casas. Todas devem pensar se terão que fugir novamente, quando (e não se) esse terrível conflito se expressará em forma de guerra e mísseis novamente.

Na minha volta para Jerusalém, estava  esperando o 448, quando um carro para na minha frente. Desce um soldado e diz:

- “Jerusalém, tem um lugar”.

Sempre que eu vou pra Gezer eu pego carona depois que desço do ônibus (ele me deixa perto de onde eu preciso ir). Mas carona para Jerusalém é algo muito raro. Ao entrar no carro percebi que os outros quatro viajantes eram também soldados. Mais novos que eu, rostos cansados, mas também aliviados. Ouvem as notícias e riem um com o outro. Então perguntei:

- “Vocês estão vindo de Gaza?”

Um deles responde:

 - “Bom, não entramos em Gaza, mas estávamos lá”.

Então perguntei o que eles achavam do cessar fogo. A resposta foi rápida.

- “Não sabemos. Não vimos as notícias dos últimos dias!”

Então perguntam:

- “E você? Qual é seu batalhão?”

Respondi que não servi ao exército, que imigrei para Israel há dois anos e, em função da minha idade, já tinha expirado a minha validade para o serviço militar. Então perguntam de onde eu venho.

- “Do Brasil”. Eu respondo.

- “Que maravilha. Que bom pra você. No Brasil não tem guerra, né?”

- “Não”.

- “Bom pra você. Muito bom”.

Logo depois o carro encosta em um outro ponto de ônibus onde um outro carro já estava parado. O soldado que estava no banco do carona abre um sorriso e dá tchau para uma mulher que estava do lado de fora. Antes de sair ele cumprimenta os amigos e diz:

- “Espero que nos encontremos em tempos felizes. Nos vemos em duas semanas no parque ou na entrada de Gaza novamente”.

Então ele sai do carro em direção à mulher. Se beijam, se abraçam, riem, se acariciam. Ele sai para pegar a mochila na mala do carro.

Ela vem ao carro e diz:

- “Deixa eu ver que é o motorista”.

Ela olha para dentro do carro, cumprimenta a todos e diz:

- “Que bom que vocês estão voltando pra casa”.

Então o motorista diz:

- “Eu fui ao casamento de vocês. Cuide bem do seu marido. Ele é um líder. Todos gostam muito dele”.
Ela abre um sorriso, agradece e vamos embora. Vamos subindo a serra e o telefone do motorista toca. Estava escrito no celular: Hagit sheli, minha Hagit. Ele atende o telefone e ouvimos uma criança chorando muito no fundo. Então a Hagit fala:

- Oi, aonde você está?

- Estou no caminho pra casa. O que aconteceu? Por que a Ylilá está chorando?

- Ela estava sentada no chão e eu pisei na mão dela sem querer.

- Fala pra ela que eu comprei uma surpresa pra ela.

- Você não quer dizer isso pra ela?

- Sim, passe o telefone para ela.

Então a criança chorando atende.

- Oi Ylilá, é o papai. Tá tudo bem?

- Sim (ainda aos berros).

- O que houve? A mamãe pisou na sua mão?

- Sim.

- Tá doendo muito?

- Sim.

- Você sabe que foi sem querer, né?

- Sim.

- Você desculpou a mamãe?

- Sim.

- O papai está levando uma supresa gostosa pra você. Mas você tem que parar de chorar, tá bem?

- Sim.

- Você quer a supresa?

- Sim.

- Então, tá. Me espera que eu estou chegando. Você vai me esperar na porta pra me dar um beijo e um abraço?

- Sim.

Então ele se despede e desliga o telefone. Todos rimos em função da enorme quantidade de respostas positivas que ele conseguiu tirar da menina. E um dos soldados que estava atrás perguntou:

- Você tem duas filhas, né?

- Sim, duas.

- Essa era a mais velha?

- Sim. Ela tem dois anos e a outra tem um ano e dois meses.

O motorista muda de assunto e pergunta:

- Pra onde vocês vão em Jerusalém? Eu vou pegar a auto-estrada Begin, depois Giló e vou pro Gush Etzion[1].

Um dos soldados atrás também ia pra Giló[2] e eu e outro para o centro da cidade.

No final das contas, estão todos felizes por estarem voltando para casa e para suas famílias. Jovens, muitos ainda com menos de 30 anos, são enviados para guerra que também pode destruir suas vidas.

Como diz Bataiole, baseado nas reflexões de Nobert Elias, “não há como pensar a sociedade sem pensar os indivíduos que a compõem. Ela se dá numa relação de interação, se constrói e se estrutura, economicamente, culturalmente, politicamente... por que o homem faz parte dela como e se ajustas as suas estruturas organizacionais. Pensar a sociedade se estar inserido no seu contexto histórico é estar fora dela, da cultura que a sustenta, como ciência[3].


[1] Gush Etzion é um bloco de assentamentos ao sul de Jerusalém, perto de onde caíram os mísseis lançados pelo Hamas. A história desse bloco de assentamentos é bem interessante: começa a ser construído no início da década de 1940. Quando é aprovada a Partilha da Palestina, o bloco fica dentro do território Jordaniano. Em março de 1948 o exército jordaniano invadiu e massacrou a resistência no bloco deixando mais de 250 mortos e mais de uma centena de prisioneiros de guerra. Com o início da Ocupação em 1967 o bloco foi reconstruído e hoje conta com mais de 21 assentamentos.
[2] Entre assentamento e bairro de Jerusalém, Giló também fica fora da linha verde e foi construído no início da década de 1970. Por se tratar de um monte alto, foi usado pelo exército egípcio para bombardear Jerusalém na guerra de 1948.
[3] http://www.recantodasletras.com.br/artigos/3620713

Um comentário:

  1. Muito interessante vc mostrar o cotidiano... seres humanos de verdade entre as linhas dos noticiários... agora, eles falaram pra vc "Brasil, muito bom, lá nao tem guerra!" Avisa que a criminalidade e o trânsito matam mais que uma guerra civil! O PCC tá matando policíais e os policiais matando gente todas as noites em SP, uns dez ou doze por noite!

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