O estudo da Shoá (do Holocausto) em Israel não é um tema
antigo, nem muito menos é parte de um consenso. Até o julgamento de Eichmann
(em 1961) o Shoá, as narrativas dos centenas de milhares de sobreviventes que
foram vítimas do morticínio nazista eram um tabu. Tais depoimentos não cabiam
na construção da memória sionista que deveria solapar a história de vitimização
e extermínio trazida por judeus que estiveram em campos da morte, sofreram as
piores torturas, que foram testemunhas do extermínio de famílias, comunidades e
cidades inteiras.
Estes testemunhos não
rimavam com o processo de construção nacional pelo qual os futuros, ou recém-israelenses
estavam passando. Afora os heróicos casos de levantes armados em guetos e
campos de concentração, lamentos e histórias de dor não cabiam no repertório de
redenção nacional e construção de um “Novo Homem” que os sionistas traziam.
Em seu livro “De Amor e de Sombras”, o personagem de Amoz
Oz, quando criança, pergunta, sobre os sobreviventes que circulavam por Jerusalém:
“O que eles querem de nós(...)
estes trapos humanos? Por que não saíram
de lá antes? Por que se deixaram apanhar? Pra que contar essa história de
humilhação e vergonha? Se for pra falarem em episódios da História judaica, há
coisas tão mais edificantes.(...)”
O julgamento de Adolph Eichmann destruiu estas barreiras; Em
frente ao Algoz, homens e mulheres, vítimas inocentes e guerrilheiros heróis
contavam o que tinham passado. Uma nação em estado de choque escutava, nas
rádios e na televisão, os depoimentos, e descobriam juntos histórias que desde
muito já conheciam.
Desde Eichmann as coisas mudaram muito. Ben Gurion dizia que
o julgamento era didático, para mostrar (e lembrar) aos não judeus o que haviam
feito dos judeus e para lembrar (e mostrar) ao judeu o que significava viver na
Galut (diáspora). Múltiplas vozes,
porém, saíram do julgamento. Hoje a sociedade israelense vive a experiência do
holocausto em seu cotidiano, e o conta com estas múltiplas vozes para fazer
suas respectivas análises.
Por um lado, a Shoá é nacionalizada e “judaizada” em
programas educacionais de escolas que receberam pra si a tarefa didática
proposta por Ben Gurion. Assim, levam jovens a campos de extermínio, onde
enrolados em bandeiras de Israel, gritam: “Nunca mais”. A direção deste nunca mais são eles, os
judeus. A garantia para o “Nunca Mais” é, justamente, a existência de um estado
de Israel forte.
Por outro lado, há
outras vozes que falam da Shoá nesta sociedade complexa e diversa. Estas vozes
se esforçam para “Universalizar” sua memória. Para eles a Shoá é um crime
contra o ser humano, por isso ela é importante para o conhecimento, de TODOS,
judeus e não judeus, vítimas e não vítimas. Escutar o testemunho de um
sobrevivente e transformá-lo em um compromisso de luta contra o preconceito
contra a discriminação é um dever de ser humano, seja este ser humano judeu ou
não judeu.
O historiador Yehuda Bauer nos lembra que o holocausto é um
fenômeno único e que deve ser comparável, justo
para provar sua unicidade. “Não devemos isolar o holocausto da história,
sob o risco de sacralizá-lo e não há nada mais profano do que sacralizar o
extermínio de milhões de seres humanos”.
O uso político do holocausto é, neste sentido, comum neste
país. De um lado o holocausto é “nacionalizado e particularizado”, enquanto de
outro ele é “universalizado e humanizado”. Na esteira da universalização do
holocausto, o educador Mario Sinay aponta a questão da seguinte maneira:
“A memória exclusivamente judaica
, do holocausto é um abraço de urso. Ele nos abraça e nós ficamos sufocados.
Quanto mais dissermos que a Shoá é nossa, menos ar teremos.”
Do outro lado, há uso político lamentável da Shoá que
explica ameaças cotidianas e questões política ordinárias a partir da Shoá. A questão
palestina, por exemplo, sob as luzes do Holocausto, ganha ares dramáticos e
coloca a todos em becos sem saída. Comparar atitudes de árabes e palestinos com
as cometidas pelos nazistas é faltar com o respeito e a lógica da história de
todos os lados. Da mesma maneira, comparar possíveis atitudes de governos
israelenses nos territórios ocupados ao que os nazistas faziam é insensato,
insano e rompe com dimensões históricas elementares. Quem faz isso, ou
desconhece o que foi o holocausto, ou o que é a ocupação, ou, ainda mais comum
não tem ideia do que foi nenhum dos dois.
Pois bem, da boca do Ministro do Exterior de Israel, Avigdor
Liberman, saiu nesta terça feira uma frase que coloca a memória do Holocausto a
serviço de interesses políticos mais baixos. Comparando as ameaças de sanções
dos governos europeus em reação a construção de bairros israelenses em
territórios palestinos, Liberman, compara tal atitude a “práticas nazistas da
época do Shoa”.
Assim, Liberman usa a memória do holocausto como um pano de
chão, usado para resolver pequenas sujeiras.
Ou Liberman não sabe o que foram as politicas nazistas da Shoá,
ou ele não tem ideia do que acontece nos bairros de Jerusalém oriental. Com
esta frase Liberman comete uma blasfêmia na única questão que deveria ser
sagrada no que diz respeito à Shoá , as memórias das vítimas da Shoá. Seja
daquelas que sobreviveram ou daquelas que efetivamente entenderam, melhor que
ninguém o que foi a Shoá, que são os milhões de mortos em câmaras de gás
nazistas, aos ouvidos de quem tal blasfêmia soaria como uma ofensa sem igual.
Adaptando a frase de Primo Levi: “Se eu fosse uma das
vítimas do Nazismo, cuspiria de volta esta frase no rosto de Avigdor Liberman.”